terça-feira, 6 de junho de 2023

STJ afasta presunção de crime por estupro de vulnerável e rejeita denúncia

FASE PRÉ-PROCESSUAL

Por Danilo Vital no Consultor Jurídico

02/06/2023 | De maneira excepcionalíssima e por maioria de votos, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um recurso especial para rejeitar a denúncia pelo crime de estupro de vulnerável praticado por um homem de 19 anos contra uma menina de 12.

Voto vencedor do desembargador convocado Olindo Menezes restabeleceu a sentença que rejeitou denúncia por estupro de vulnerável / Flickr/STJ


É a primeira vez que o colegiado aplica um distinguishing (distinção) em relação à tese fixada em 2017 segundo a qual o consentimento da vítima ou a existência de relacionamento amoroso com o acusado não afasta a tipificação do crime previsto no artigo 217-A do Código Penal.

A técnica da distinção é usada quando o magistrado compara os pressupostos de fato e de direito que levaram à formação de um precedente, em relação a um determinado caso concreto que esteja em julgamento. Se não houver identidade entre esses pressupostos, o intérprete pode superar o precedente vinculante e decidir a causa como entender de direito.

Nos casos de estupro de vulnerável, o distinguishing só havia sido admitido em julgados da 5ª Turma do STJ para afastar condenações que, nos casos concretos, se mostrariam mais prejudiciais por desestabilizar núcleos familiares formados entre as vítimas e seus supostos estupradores. Recentemente, o colegiado ainda reforçou que tais hipóteses são absolutamente excepcionais.

A novidade no caso julgado pela 6ª Turma é que a fase processual não chegou a ser inaugurada. O juiz de primeiro grau rejeitou a denúncia com base em depoimentos prestados perante a polícia e, portanto, sem que houvesse o contraditório judicial. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, por sua vez, mandou o processo seguir com base na tese do STJ.

Esse ponto gerou divergência na 6ª Turma, inaugurada pelo ministro Rogerio Schietti e acompanhada pela ministra Laurita Vaz. Venceu o voto do relator, desembargador convocado Olindo Menezes, que optou por rejeitar a denúncia, acompanhado pelos ministros Sebastião Reis Júnior e Antonio Saldanha Palheiro.

Proveito social

Segundo a corrente vencedora, o distinguishing no caso concreto reside em duas peculiaridades: a diferença de idade entre vítima e acusado é de seis anos, consideravelmente menor do que a de outros precedentes; e o fato de, do relacionamento aprovado pelas famílias, eles terem gerado um filho, fato social que não pode ser desprezado.

Assim, o comportamento do denunciado não colocou em risco a sociedade e o bem jurídico protegido pela regra do artigo 217-A do Código Penal. Para o desembargador convocado Olindo Menezes, não se registra proveito social com a possível condenação, a qual inclusive seria agravada pelo fato de esse estupro ter resultado em gravidez.

Ministro Rogerio Schietti pontuou a necessidade de evitar a romantização das circunstâncias do estupro de vulnerável | Nelson - Jr./STF


“A eventual condenação de um jovem pelo delito de estupro de vulnerável com a causa de aumento prevista no artigo 234-A, III, do CP acarretaria uma sanção de, no mínimo, 13 anos e 4 meses de reclusão, no regime fechado, a ponto de destruir uma entidade familiar, colocando em grave risco a própria vítima e o filho, que não terá o suporte material e emocional do pai, cujo genitor terá que suportar a estigmatização pela sociedade, diante da etiqueta de estuprador”, afirmou o relator.

Ao formar a maioria, o ministro Sebastião Reis Júnior entendeu que o caso não relativiza a proteção ao menor vulnerável. Classificou a situação dos autos como muito peculiar e afirmou que a sentença que rejeitou a denúncia foi muito cuidadosa e bem fundamentada.

“Não acho que devemos ser lenientes com essa situação. Mas, na circunstâncias em que o caso ocorreu, não vejo que retomar o curso do processo com a possibilidade concreta de condenação será saudável para a vítima. Será mais um ônus, mais um drama — o pai do filho dela passará a ser condenado”, apontou o ministro Saldanha Palheiro, que desempatou a votação.

Relativização perigosa

Abriu a divergência o ministro Rogerio Schietti, para quem o distinguishing usado em casos da 5ª Turma não se aplica no caso concreto porque não só não houve condenação como a instrução processual sequer foi iniciada. A posição da maioria se baseou em depoimentos colhidos na fase de inquérito.

Em sua visão, rejeitar a denúncia significa admitir a jurisprudência antiga que delegava ao juiz uma avaliação subjetiva sobre a vulnerabilidade da vítima. O julgamento era baseado não na conduta do acusado, mas da pessoa menor de 14 anos com quem ele manteve relações sexuais.

“Os que se recordam desse tempo bem sabem o grau de insegurança jurídica que essa jurisprudência produzia, pois induzia todo tipo de argumentação, pelo acusado, para demonstrar que a vítima não era concretamente vulnerável”, afirmou o ministro Schietti. “Abre-se uma perigosa porta de subjetividade judicial”, acrescentou.

Nesse ponto, mesmo as conclusões pela rejeição da denúncia não têm comprovação judicial, pois não houve o contraditório. A sentença se baseou na mera opinião do magistrado, segundo a qual a vítima não foi enganada ou iludida e não teve a sua dignidade sexual violada.

Ao desempatar votação, ministro Saldanha Palheiro citou consequências sociais da denúncia diante das peculiaridades do caso / STJ


Ao acompanhar a divergência, a ministra Laurita Vaz acrescentou que admitir que o ônus da prova seja invertido no recebimento da denúncia, presumindo-se que o comportamento do acusado foi lícito, viola a proteção inaugurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Citou também o “perigo que relativização da jurisprudência representa, em um país profundamente marcado pela exploração sexual infantil e pela desigualdade”. 

Romantização do estupro

O voto do ministro Schietti propõe a preservação da jurisprudência do STJ com base também em dados alarmantes sobre o número de casamentos infantis (união formal ou informal em que pelo menos uma das partes tenha menos de 18 anos) e de gravidez precoce no Brasil.

Segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o país é o quarto do mundo em número de casamentos infantis, cujas consequências passam por abandono escolar, gestações indesejadas e impactos na saúde física e mental de menores — em regra, meninas.

E de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde, a gravidez na adolescência é um dos principais fatores que contribui para a mortalidade materna e infantil e para o ciclo de doenças e pobreza. Esse cenário conduz à necessidade de afastar a romantização das circunstâncias apresentadas em um processo criminal de estupro de vulnerável.

“Diante de todos os elementos do artigo 217-A do CP, ao julgador é indevido presumir que a punição do agressor ensejará prejuízo maior à vítima, porque não se tem a dimensão exata da violência passada por ela sofrida e do que o matrimônio e a maternidade precoces representaram e representarão em seu futuro”, fundamentou.

Para ele, o caso trata de um voluntarismo judicial. Não se sabe, por exemplo, se o acusado continua casado com a vítima, se auxilia na criação da criança ou se foi apenas um relacionamento que se rompeu com o tempo. Essas dúvidas e o cenário que embasou a rejeição da denúncia precisam ser esclarecidas durante o processo.

“O que não se há de aceitar é que algo tão sério — um estupro de vulnerável — seja solucionado com uma decisão judicial precipitada, exarada antes da atividade probatória das partes e eivada de considerações subjetivas do magistrado que, nem de perto, seguem os múltiplos precedentes desta corte, sua súmula de jurisprudência e a própria lei penal”, opinou.

REsp 1.977.165

Danilo Vital é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 2 de junho de 2023, 7h33

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